sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O problema do livre arbítrio (capítulo 3): Se podíamos viver sem livre arbítrio? Podíamos, mas não era a mesma coisa...



CAPÍTULO 3

Se podíamos viver sem livre arbítrio? Podíamos, mas não era a mesma coisa...

(Libertismo: tese, argumentos e principais objeções)


            Situação 1. Imagina que chegas à livraria para comprar um manual de filosofia e descobres que o livro está rigorosamente em branco. Folheias folha após folha e não há uma única palavra escrita. Estranho, não é verdade? Decerto voltarias à livraria para devolver o manual, alegando que tinha havido um erro de impressão. Entregavam-te outro, ficava o caso resolvido e voltavas para casa. Tudo normal, portanto.


            Situação 2. Imagina que voltas um dia mais tarde à livraria para comprares um daqueles cadernos para servir de diário. Chegas a casa e descobres que o caderno já está completamente escrito. Folheias folha após folha e não há uma única página em branco. Estranho, não é verdade? Decerto voltarias à livraria para devolver o caderno, alegando que já estava usado. Entregavam-te outro, ficava o caso resolvido e voltavas para casa. Tudo normal, portanto.
            Tudo normal? Normal por quê? Vamos falar disso.
É suposto um manual escolar já estar escrito, certo? Ele existe para ajudar os alunos a aprender e os professores a ensinar. Já o caso do diário é diferente. Um diário tem de estar em branco porque é suposto ir sendo preenchido à medida que o seu autor vai vivendo o dia a dia. E as folhas têm necessariamente de estar em branco porque, em rigor, ninguém sabe o que escrever no diário antes de ter vivido. Pode até dizer-se que cada dia da nossa vida é como se fosse uma página do nosso diário de vida.


Vais ter oportunidade de discutir esta ideia mais à frente, num diálogo que escrevi sobre este problema do livre arbítrio. Que diálogo é esse? - perguntas tu. Trata-se de uma entrevista imaginária a Jean-Paul Sartre, um célebre filósofo francês do séc. XX. Nela, a jovem estudante de Filosofia que faz de entrevistadora afirma a dada altura:

“A nossa vida é um livro em branco que nós próprios vamos escrevendo e de que somos os únicos autores”.

            Nesta frase está presente uma teoria filosófica muito interessante sobre o problema do livre arbítrio. É habitualmente designada por libertismo. Vou apresentar-te agora as ideias principais desta teoria. Se me quiseres ouvir (se quiseres, sim, porque os libertistas acham que és tu quem decide se ficas ou não aqui a ouvir-me...). Se ficares, explicar-te-ei a tese do libertismo e os argumentos principais que a sustentam.
            Lembras-te decerto do determinismo radical, a teoria de que falámos no capítulo anterior. Os deterministas radicais defendem que tudo o que acontece no universo é determinado por leis físicas, incluindo aqui as ações humanas. Por isso concluem que tudo é determinado e que não existe livre arbítrio. Pois bem, o libertismo defende que apenas o universo físico é determinista. A vontade e a consciência humanas não são determinadas pelas leis físicas do universo. Jean-Paul Sartre expressa essa ideia assim:

Não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e no entanto livre, porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto fizer.

Jean-Paul Sartre, in O Existencialismo é um Humanismo

            Como podes verificar, o libertismo é também uma teoria incompatibilista, mas num sentido oposto ao do determinismo radical. Ambos defendem que a existência em simultâneo de determinismo e livre arbítrio são incompatíveis. A diferença está em que o libertismo, aqui exemplificado por Sartre, considera que existe livre arbítrio e, portanto, não existe determinismo. Vamos agora ver por quê.

Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
            São dois os argumentos principais do libertismo. O primeiro apela a uma experiência intuitiva que todos nós temos: a experiência de termos de escolher. Em termos mais rigorosamente filosóficos, este argumento é habitualmente designado por argumento da experiência imediata da vontade. Isto quer dizer que todos nós temos a experiência de sermos confrontados com várias hipóteses e que, em função da nossa vontade, escolhemos livremente. Quando decidimos fazer a acção X e não Y, vivemos uma experiência de escolha. Esta experiência de escolha é algo que acontece de facto, não é um sonho ou uma ilusão. Ora, livre arbítrio é ter possibilidade de escolha, certo? Logo, existe livre arbítrio.
O segundo argumento que escolhi para te apresentar aqui pode ser encontrado no diálogo imaginário com Sartre. Designa-se habitualmente por argumento da criação artística, uma vez que faz uma analogia entre a liberdade do artista ao criar a sua obra de arte e a liberdade do ser humano ao decidir o que fazer da sua vida. Comecemos por aqui: aceitamos pacificamente que o artista é livre de criar o que quiser. Um exemplo: perante a tela em branco, é o pintor quem decide livremente o que pintar - seres ou objectos reais (pintura figurativa) ou formas abstractas, utilizar cores quentes ou frias, etc.. Portanto, as escolhas do artista são incondicionadas e são fruto da sua própria vontade. O mesmo acontece com a vida dos seres humanos. De onde se conclui que a vontade humana é livre. Mas será esta uma boa teoria?
O seu ponto forte parece ser o facto de todos nós estarmos familiarizados com a ideia de «escolha». A sociedade (através de normas como «recompensa», «castigo», «responsabilidade civil») e a própria linguagem pressupõem-no. Neste sentido, o libertismo é consistente com a crença de que somos livres e realizamos acções pelas quais somos responsáveis.
No entanto, como sempre acontece na filosofia, também há objeções que se podem colocar a esta teoria. Vou apresentar-te duas dessas objeções.
Mente e cérebro serão a mesma coisa? Segundo o libertismo, existe uma diferença fundamental entre o cérebro e a mente: o cérebro (entidade física), obedece às leis deterministas do mundo físico, enquanto que a mente não é determinada causalmente. Ou seja: defende que uma coisa não física (a mente) interfere com os fenómenos do mundo físico (as acções). E daí, qual é o problema? – ouço-te a perguntar. Repara bem: ao atribuir-se um estatuto especial à mente humana (o lugar onde a vontade livre toma as decisões), ela surge como uma espécie de «fantasma». Tal como os fantasmas, seres não físicos e não palpáveis, de quem se diz que podem abrir portas e arrastar correntes, também a mente (não física) conseguiria interferir no mundo físico sem, no entanto, ter uma estrutura física. Estranho, no mínimo. Tanto ou mais estranho que a própria ideia de fantasmas...


Finalmente, parece que o estatuto especial que o libertismo atribui aos seres humanos (os únicos a disporem de livre arbítrio, ao contrário de todos os outros seres existentes no universo) conduz inevitavelmente a esta pergunta: por quê um poder especial para os seres racionais? O que existe de tão especial na racionalidade que justifique estar acima das leis da natureza? Tal como José Mourinho no futebol, será o ser humano o special one da natureza?


Para finalizar, convido-te a ler a entrevista imaginária a Jean-Paul Sartre aqui.

Diverte-te!

2 comentários:

  1. Olá! Muito bom o texto gostaria de pedir permissão em usar uma frase sua num dos meus textos, naturalmente sendo honesto vou credita-lo.

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  2. Disponha, Gerson. E obrigado pelo seu comentário.
    Abraço

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